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TEXTOS

Salzburg, julho de 2010: palestra de Alberto Dines


Alberto Dines

Excelentíssima presidente do Festival de Salzburgo, Helga Rabl-Stadler,

caros colegas Dr. Hildemar Holl, presidente da Sociedad Internacional Stefan Zweig, e Dr. Klemens Renoldner, diretor do Centro Stefan Zweig,
minhas senhoras e meu ssenhores,


Preferiria falar-lhes em alemão. Mas toda vez que tento falar alemão, acontece algo estranho: transforma-se em iídiche. E como disse Kafka, apesar de todas as semelhanças é impossível traduzir diretamente do iídiche para o alemão. Por isso, conto com a ajuda de Kristina Michahelles, tradutora do livro que está sendo apresentado para o alemão.

É emocionante falar sobre Stefan Zweig em Salzburg. Aqui ele viveu quase duas décadas, aqui produziu as suas obras mais importantes, depois de Jeremias até Der begrabene Leuchter. Das três vidas que ele disse ter vivido, a primeira foi em Viena e estendeu-se até o fim da primeira guerra, a segunda vida foi aqui, em Salzburg, no intervalo entre as guerras.

Porém uma outra de suas vidas que ele próprio não teve tempo nem perspectiva para definir e periodizar é a sua vida brasileira. Sim, há um Zweig “brasileiro”. Zweig e o Brasil compõem um capítulo aparte tanto na biografia do escritor como na biografia do próprio país já que países também têm biografias. Poucos biógrafos deram a devida atenção à relação de Zweig com o Brasil. A notável exceção é Donald Prater, o precursor, até hoje inigualável. O Brasil até há bem pouco tempo era um recanto tropical no outro lado do oceano, em outros hemisfério. E, além disso, sem grande importância. Alguns dos sucessores de Prater até hoje acham que o Brasil foi apenas uma escala acidental nas viagens deste Wanderer movido pela curiosidade.

O Brasil é longe, reconheço. Mas longe de onde? Para um escritor como Zweig que apaixonada e desesperadamente buscava aproximações com gente, épocas e lugares, nada é longe, nada é distante ou alheio. Zweig perseguia a unidade espiritual do mundo (aliás, título da conferência que pronunciou no Rio em 1936 e até hoje inédita). Lembro-me que em seguida à publicação das primeiras edições brasileiras de Tod im Paradies em 1981 e 1982, a minha amiga e tutora, Susanne Eisenberg-Bach, já falecida e que ainda residia no Rio de Janeiro, foi a uma grande editora da Alemanha e ofereceu-se para traduzir o livro para o alemão. Suzie Bach foi bem recebida, afinal era uma das primeiras pesquisadoras da Literatura do Exílio, mas foi obrigada a ouvir a incômoda pergunta: “afinal, o que pode um autor brasileiro acrescentar à biografia de Stefan Zweig?

Zweig não apenas morreu no Brasil. Ele agonizou no Brasil, desesperou-se no Brasil. E sua derradeira esperança no tocante ao destino do mundo relacionava-se com o Brasil. Seus últimos dias naquele Eldorado já inflamado pelo clima da guerra - guerra esta, da qual há dois anos fugia desesperadamente – são suficientes para responder. Mas não só a sua morte no Brasil valoriza o país na vida de Zweig. Os seus últimos seis anos, mais precisamente de 1936 a 1942, estão impregnados com o Brasil. Considerando que viveu 60 anos e meio, pode-se dizer que sua “vida brasileira” ocupa cerca de 15% da sua vida adulta.

Este livro que viemos apresentar trata de uma obra de Zweig que muitos especialistas consideram secundária, Brasil, um país do futuro. Alguns o desclassificam como “literatura de viagem” e mero prospecto turístico. Outros o enxergam como uma utopia política, irrealista e impraticável. Na época houve quem acusasse Zweig de ter-se vendido ao ditador Getúlio Vargas. Da extensa obra de Zweig foi o livro mais criticado e vilipendiado publicamente. Ao longo de quase 70 anos, tornou-se obrigatória a associação do país-personagem ao subtítulo, “país do futuro”. É uma alcunha, epônimo, serve aos otimistas e aos pessimistas, aos céticos e aos entusiasmados. O presidente Lula, grande especialista em marketing, serviu-se da fórmula “país do futuro” inúmeras vezes. Agora depois da lamentável exibição brasileira no Mundial de futebol, muitos comentaristas esportivos fizeram blague: o futuro vai demorar. Zweig, aliás, detestava as competições esportivas de massas e talvez o seu erro mais clamoroso seja a afirmação de que o Brasil não se fascinava por elas. Mas no resto Zweig acertou.

O Brasil não foi apenas a agradabilíssima escala numa viagem cuja finalidade era para Zweig extremamente desagradável – o Congresso do P.E.N. Club em Buenos Aires, Argentina em 1936, onde fatalmente só se trataria de política e ele detestava política. Muito antes de aceitar o convite, Stefan Zweig já se interessara pelo Novo Mundo. Não me refiro à apressada viagem de 1911 à América Central, Caribe e América do Norte empreendida depois da outra ao Extremo-Oriente em 1908. Ambas faziam parte do mesmo conselho oferecido pelo amigo 14 anos mais velho, Walter Rathenau: antes de escrever sobre o mundo seria conveniente conhecê-lo. Naquele início do século XX, os “anos elétricos”, era necessário movimentar-se. Estas primeiras viagens podem ser classificadas como “deslocamentos”, necessidade de cortar as raízes, sair do casulo, esticar as pernas, mexer-se, agitar-se.

Naquele momento, o Extremo Oriente era um destino obrigatório, tal como a Grécia e a Itália no romântico século XIX. Todos escreviam sobre o Oriente, por isso não se encantou, por isso o Oriente rendeu tão pouco em termos literários (a famosa novela Amok, duas lendas e algumas miniaturas não muito expressivas). O Novo Mundo ainda era algo impreciso, vago, sobretudo diversificado: a América Central nada tinha a ver com a América do Norte. Literariamente, rendeu menos ainda. Mas 17 anos depois, no fim da década de 20, quando o Velho Mundo começou a rachar, apoiado na sua acuidade e intuição, Zweig percebe as diferenças: a América não era uma unidade, nem um continente, sequer um mesmo hemisfério.
Em outubro de 1928, em carta ao amigo suíço-argentino, Alfredo Cahn, Zweig faz uma opção inesperada e explícita a um pedaço do Novo Mundo: o sul da America do Sul – mais precisamente a Argentina e o Brasil. Esta é uma carta de grande importância e constitui um marco na vida de Zweig. É possível que este foco mais preciso tenha sido sugerido por uma pessoa que ele muito admirava, o conde Hermann von Keyserling com quem esteve antes e se correspondia. Uma coisa é certa: quatro anos depois, em Dezembro de 1932, Zweig volta a dirigir-se a Cahn para organizar uma viagem de zepelim ao Brasil e Argentina. Percebe-se que fez algumas leituras, pesquisou, tem um projeto definido e quer materializá-lo. O conde Keyserling é mencionado explicitamente como o autor de Südamerikanische Meditationen que muito o impressionou. Fica clara a rejeição à “prosperity” americana e a preferência por um território que representasse a extensão do humanismo europeu. Não o seduziam o materialismo soviético nem o americano como aconteceu com a maioria dos intelectuais e artistas. Preferia algo mais rústico, mais natural, mais verdadeiro.

Entenderemos porque esta viagem não se materializou ao examinar a data da carta a Cahn: véspera do Natal de 1932. Dentro de exatos 31 dias Adolf Hitler tomará o poder na Alemanha. Antes de iniciada a catástrofe, Zweig já procurava uma alternativa. Acabara de descrever os erros da Revolução Francesa com a biografia de Maria Antonieta, sentiu o terremoto que se armava. Registrou sua angústia nos diários. Nesta linda e aparentemente segura Salzburg percebeu que a solução talvez se encontrasse nos antípodas. Nada era longe para Zweig.

Pretendia primeiro cumprir o compromisso em Buenos Aires e depois extasiar-se com o Brasil, como, aliás, fez a maioria dos delegados ao Congresso. Inverteu o roteiro, deu no mesmo: a permanência na Argentina marcada pela política que tanto o incomodava não conseguiu apagar as emoções brasileiras. Numa das arrebatadas declarações à imprensa no Rio anunciou profeticamente: “serei o ‘camelot’ do Brasil na Europa.” Estamos aqui, 74 anos depois, porque Zweig cumpriu o que prometeu.

Voltou para Londres, desfez a casa em Kapuzinerberg e o casamento com Friderike. Quando, em 1938, a Áustria desapareceu tragada pela Alemanha, tornou-se um apátrida: assustou-se e um dos seus primeiros gestos foi tentar a cidadania brasileira. Gesto simultâneo foi tentar a cidadania britânica. O governo brasileiro não criou dificuldades – apesar da rigorosa restrição à entrada de refugiados – mas ele teria que vir ao Brasil para prestar o juramento. Preferiu esperar pelo passaporte inglês onde estava.

Volta a recorrer ao Brasil em junho de 1940 quando se apavorou com o avanço das tropas nazistas. Acabara de casar-se com Lotte Altmann e comprara uma linda casa em Bath, mesmo assim não se sente seguro, imagina que a Wehrmacht logo atravessará o canal da Mancha. Nos seus diários, de repente, reaparece a angustiada pergunta: “Wohin?” E no dia seguinte ao famoso discurso de Winston Churchill prometendo à Inglaterra “seus melhores momentos” (19 de Junho), Stefan e Lotte embarcam para o Brasil, via Nova York.
O pretexto oficial era uma tournée de conferências na América Latina, na verdade vinha preparar o prometido livro sobre o Brasil. A tournée resumiu-se à Argentina e uma meteórica passagem pelo Uruguai. Em Buenos Aires, Stefan e Lotte tinham um compromisso secreto da maior importância: receber o visto de residência definitiva no consulado brasileiro. Estava salvo – já não precisaria repetir a pergunta “Wohin?”. Tinha para onde ir e ficar.
Ficou no Brasil cinco meses, percorreu uma pequena parte do país, porém mergulhou na sua história. Como um bom camelot, para vender o produto precisaria conhecê-lo, sobretudo compreendê-lo. Escreveu uma parte ainda no Rio, mas o grosso foi composto nos Estados Unidos onde se serviu da riquíssima biblioteca da Universidade de Yale. Preocupou-se muito em não cometer erros, mas a preocupação maior desde o início do projeto era promover um mega-lançamento internacional. Queria que o mundo em guerra conhecesse um país que para ele representava a paz e a harmonia.

Em plena guerra mundial, em meados de 1941, consegue vencer sua depressão e organiza o lançamento quase simultâneo da edição brasileira, portuguesa, americana, alemã e sueca. As edições em francês e espanhol saíram em seguida, logo no início de 1942. Uma façanha editorial e um milagre de determinação. Seu último momento de vitalidade.

O título ficou para o fim. Não conseguia encontrar algo mágico, não convencional. Em alguns contratos consta um título provisório. A sugestão final veio de James Stern, aliás Andrew St. James, o tradutor do original alemão para o inglês que residia em Nova York. Stern pinçou a expressão-chave na epígrafe em francês escolhida por Zweig: “une terre d’avenir”. O texto do livro está cheio de alusões ao futuro, mas ele não se deu conta. Seu tradutor percebeu na epígrafe a sua força. Infelizmente a bela epigrafe foi extraída de uma carta enviada pelo conde Prokesch-Osten, embaixador austríaco na corte do imperador brasileiro, D. Pedro II, a um diplomata francês para convencê-lo a aceitar o posto de embaixador no Rio de Janeiro. Zweig não se deu conta que o nome do destinatário da carta era maldito -- Joseph-Arthur Gobineau, inventor do moderno racismo, patrono da direita francesa e do governo títere de Vichy.

A epígrafe foi sumariamente suprimida da edição francesa impressa em Nova York por uma editora antifascista e até hoje o leitor francês desconhece que o belo título País do Futuro está relacionado com a odiada figura de Gobineau. Nas edições póstumas brasileiras a epigrafe também foi removida, assim também na Argentina.
Pronto o livro, novamente a pergunta incômoda: para onde ir – Wohin? Poderia regressar com Lotte à Inglaterra, mas o país estava sendo devastado pela Luftwaffe, o perigo da invasão não estava afastado, ao contrário, crescia. Poderiam permanecer nos EUA, mas a opção não agradava a Lotte. Restava a idéia de retornar ao Brasil e colher os aplausos pelo livro brasileiro que estava sendo lançado naquele exato momento.

Iludido pelos seus sucessos anteriores e sobretudo pela cordialidade brasileira jamais poderia imaginar que o livro seria mal recebido. Quando desceu no porto do Rio, o livro já estava nas livrarias há três semanas. O público reagiu muito bem, mas as críticas na imprensa foram arrasadoras. Principalmente no mais importante matutino da Capital, o Correio da Manhã, cujo redator-chefe ao longo de uma semana o atacou impiedosamente na página de opinião em artigos assinados como se fosse um inimigo-público. Os argumentos eram maldosos, mesquinhos, marcados por preconceitos e insinuações sobre o financiamento do livro. O regime político era ditatorial, a imprensa sob censura, os jornalistas não ousavam criticar o governo, era mais cômodo criticar um famoso autor estrangeiro supostamente pago para louvar o país.

A escolha do refúgio em Petrópolis nada tem a ver com a reação desfavorável, Zweig fugia do calor do Rio de Janeiro. Fingiu que não se importou com as críticas. Nas cartas percebe-se que ficou mortificado. A depressão que o levou ao suicídio não foi alimentada pela decepção com as críticas. Nas 21 linhas da sua famosa carta de despedida, o primeiro parágrafo com 10 linhas é ocupado pelo carinhoso agradecimento ao Brasil. Seus herdeiros, Manfred e Hannah Altmann, tentaram retribuir.

Epílogo pouco conhecido: exatamente um ano depois da morte, em Março de 1943, o irmão e cunhada de Lotte encaminharam à embaixada brasileira em Londres o desejo de oferecer ao povo brasileiro todo, eu disse todo, acervo pessoal do escritor: obras inéditas, correspondência, fotografias, desenhos, etc. para constituir um museu. A embaixada brasileira prontamente encaminhou o oferecimento ao Ministério das Relações Exteriores e este, sem saber o que fazer, informou o Ministério da Justiça e Negócios Interiores. O Brasil estava em guerra, havia problemas mais importantes para resolver.

Os jornais mencionaram o oferecimento discretamente: o jornalista Raul Azevedo que conheceu Zweig pessoalmente sugeriu que o novo museu se chamasse Casa Stefan Zweig. O assunto não foi adiante, esquecido numa gaveta. Manfred e Hannah Altmann, únicos herdeiros do casal Zweig, morreram num acidente pouco depois do fim da guerra. Hoje o conceito de País do Futuro enche de orgulho tanto o governo como a oposição. Zweig é considerado profeta e precursor.

A Casa Stefan Zweig já existe em Petrópolis: será um memorial do Exílio e o guardião de uma história que começou aqui em Salzburg em Outubro de 1931 quando Stefan Zweig começou a inquietar-se e inscreveu nos diários pela primeira vez a pergunta Wohin?